terça-feira, 5 de junho de 2007

Teologia do Deus Crucificado

Texto de Ricardo Gondim

Minha teologia se alicerça fortemente em minha cristologia. Levo a sério a resposta que Jesus deu a Felipe; o apóstolo queria ver a Deus e achava que isso lhe deixaria satisfeito:

“Quem me vê, vê o Pai”. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’? Você não crê que eu estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra. Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim; ou pelo menos creiam por causa das mesmas obras” – João 14.9-11.

Minha teologia tenta alcançar a altura do que Paulo revelou à igreja dos colossenses: "Ele é a imagem do Deus invisível... pois toda a plenitude agradou-se em habitar nele”. – Cl 1.15 e 19.

Entendo que o maior mistério da fé cristã foi a encarnação – Deus, sem deixar de ser Deus, fez-se homem e habitou entre nós. Que escândalo para judeus e gregos conceber que a divindade descesse qualquer degrau, quanto mais o que a tornasse semelhante (da mesma natureza), que a humanidade!

Na lógica cristã, entretanto, esse esvaziamento (kenosis) foi necessário para que Deus entrasse na história, se submetesse às contingências da existência, fosse tentado, sofresse e morresse como qualquer um de nós.

Assim, seu berço foi forrado com o capim que os animais comiam; na infância seus pais se refugiaram em um país estrangeiro; teve fome, passou por constrangimentos mil e acabou com a mesma sorte de milhões de negros, miseráveis e mulheres que padeceram sob poderes totalitários.

Entendo, entretanto, que o esvaziamento de Jesus não significou que, encarnado, ele tenha se desfigurado de sua absoluta identidade com o Pai.

O jeito, o caráter, os sentimentos, o comportamento, a maneira de ser de Deus foram plenamente expressos em Cristo – “o Pai vive em mim”. Jesus é a interface entre a humanidade e o Deus jamais visto.

Para se entender como Deus trata os desvalidos, basta olhar para Jesus tocando em leprosos; para se entender a opinião de Deus sobre os sistemas religiosos adoecidos, basta olhar para Jesus virando as mesas do templo; para se entender o coração de Deus pelas multidões, basta ouvir Jesus: “Vejo as multidões como ovelhas sem pastor”; para se entender a frustração de Deus com a obstinação rebelde das pessoas, basta ouvir o lamento de Jesus sobre Jerusalém que recusou aninhar-se debaixo das asas do Altíssimo.

A Trindade habitou corporalmente em Jesus de Nazaré, inclusive ou, principalmente, na cruz. O Pai não se manteve distante nos horrores da morte de seu Filho. No controverso filme de Mel Gibson, para mim, o momento mais contundente foi o quando Jesus morreu e uma lágrima caiu do céu; seu impacto na terra desequilibra o ambiente cobrindo tudo de trevas e lascando as rochas.

Bruno Forte, filósofo e teólogo italiano, discorreu sobre esse momento:

E o Pai? Permaneceu indiferente, prisioneiro de um “divino egoísmo” diante do sofrimento do Filho? Ou não há também um profundo sofrimento do Pai, apesar de oculto pela discrição do amor que sofre? Na realidade, o Filho foi enviado pelo Pai: nesse envio já há um desapego do Pai: “Restava-lhe ainda alguém: o Filho amado. Enviou-o por último, dizendo: “Eles respeitarão meu Filho (Mc 12.6 – parábola dos vinhateiros homicidas). O Filho “só faz aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5.19): se o Filho sofre, é porque o Pai sofre, precedendo-o na Via Dolorosa. Entre eles há uma relação de recíproca doação (“o que é meu é teu...” Jo 17.10), de recíproca imanência (“o Pai está comigo”: Jo 16. 32). Essa relação chega ao ápice na hora da dor, quando o Filho sofredor revela o mistério do sofrimento do Pai. O Pai “não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8.32); ele “tanto amou o mundo que entregou seu Filho único (Jo 3.16). O sofrimento do Pai corresponde ao sofrimento do Filho, “que me amou e entregou a si mesmo por mim (Gl 2.20).

Deus sofre na cruz como Pai que oferece, como Filho que se oferece, como Espírito que é o amor permanente de Jesus sofredor. A cruz é a história do amor trinitário de Deus pelo mundo:um amor que não se limita a suportar o sofrimento, mas o acolhe ("Jesus de Nazaré - História de Deus e Deus da História" - Paulinas, p.26 - grifos meus).

Cada dia mais entendo a theologia crucis, ou “teologia do Deus crucificado”, não só como clave soteriológica, mas como revelação do próprio Deus. É no grito agonizante do Calvário que sabemos o impacto que as dores do mundo produzem no coração de Deus.

O sofrimento humano é exagerado. Quem conseguiria medir, pesar, enfim, conceber a dor das mães que já enterraram dois ou três bebês, mortos por diarréia ou por malária? Quem sabe a dor de um pai que vê seu filho morrendo devagarinho pela AIDS? Deus não só presencia, como tem com-paixão (sofre do lado) de todos.

Volto a citar Bruno Forte:

A mentalidade grego-ocidental não sabe conceber mais do que o sofrimento passivo, suportado e portanto imperfeito, postulando por isso a impassibilidade de Deus. Contra essa mentalidade, o Deus cristão revela uma dor ativa, livremente escolhida, perfeita na perfeição do amor: “Ninguém tem amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos” (Jo 15.13).

O Deus cristão não está fora do sofrimento do mundo, como espectador impassível diante dessa dor, lá no alto de sua imutável perfeição: ele assume e a vive da maneira mais intensa, como sofrimento ativo, como dom e oferenda da qual jorra a vida nova para o mundo.

Por aquela sexta-feira santa, nós ficamos sabendo que a história dos sofrimentos humanos é também a história do Deus cristão: ele está presente nela, sofrendo com o homem e fazendo que o homem participe do valor imenso do sofrimento oferecido por amor. Deus não é “a oculta parte contrária”, a quem se eleva o grito do sofredor e do desolado. Mas é, “num sentido mais profundo, o Deus humano, que grita no sofredor e com ele, e que intervém a favor dele com a própria cruz, quando o sofredor em seus tormentos emudece.

É o Deus que dá sentido à dor do mundo, porque a assumiu de tal maneira que fez dela o seu próprio sofrimento. Este é o sentido do amor.

Contra a resignação fideísta e a rebelião atéia, o Deus crucificado torna o homem capaz de um sofrimento ativo, de um sofrimento vivido na comunhão com todos os desolados da terra e em oblação ao Pai, que o acolhe e lhe confere o valor.

Assim, a história dos sofrimentos do mundo é transformada na história do amor do mundo. Por isso o Deus crucificado é a única verdadeira novidade do viver humano.

O homem de hoje é provado pelo sofrimento de sempre, é deixado sozinho no silêncio do Deus que foi declarado “morto”, é oprimido pela injustiça e pela iniqüidade. Esse homem tem necessidade do sofrimento, tanto quanto o homem de sempre. Daí a necessidade da "theologia crucis", da teologia do Deus crucificado, que responda ao grito do Deus agonizante e capte nele, abandonado, o sentido das dores do mundo.

Diante da interrogação da dor, diante da tragicidade do nada que dela emerge, a palavra da cruz ressoa como “evangelho” também para os homens de hoje: "a dolor contra dolorem" é o amor de Deus, o amor que tira a nossa dor. Por isso, a mensagem da dor de Deus é a alegre nova. Por isso, os cristãos não cessam de proclamá-la” (Bruno Forte, p.27).

O pobre não tem onde encontrar fontes de esperança em um mundo onde, “por detrás das relações de troca no mercado existem relações de exploração”; em um mundo onde, “por detrás das relações de voto, existem relações de dominação”; em um mundo onde, “por detrás das relações de informação, há um processo de alienação”. (Emir Sader - revista "Caros Amigos, Abril de 2007. p 40). O frágil Nazareno, também chamado de Filho do Homem, foi Deus encarnado que viveu igual a todos, contudo, venceu e por isso, é a inspiração de milhões de enjeitados.

O Deus que nos foi revelado tem a cara de Jesus. A mais alvissareira notícia que proclamamos não é só que Jesus seja idêntico a Deus, O Pai também é idêntico ao Filho.

Soli Deo Gloria